Esculápio, o deus da medicina na mitologia grega (comecei longe para
cacete, para falar de vacinas) tinha duas filhas: Higéia e Panacéia. A
primeira está ligada às boas regras de bem viver: bons ares; bons
alimentos sem excessos; atividade física; descanso apropriado;
moderação em geral (aquilo que os cristãos chamariam de temperança).
Panacéia, estava ligada ao uso de recursos terapêuticos (ervas, sais,
poções, beberagens etc) para corrigir problemas, curar moléstias e
recuperar a saúde, ou seja, voltar à condição normal ou de equilíbrio.
A primeira, portanto, está na linha das regras de promoção da saúde
que vocês comentaram, no sentido de tornar o indivíduo mais resistente
aos fatores de desequilíbrio e a segunda aos métodos de cura quando
isso acontece.
As vacinas entram na definição de “proteção específica”, porque são
voltadas para riscos definidos. Obviamente, como tudo que se introduz
no organismo, dependem de um balanço de risco, ou seja, no fundo de um
cálculo de custo benefício. O ideal seria que o risco fosse zero e o
benefício total, mas, infelizmente, o mundo não é assim tão simples.
Em alguns casos o cálculo é mais fácil. Por exemplo: a vacina de
raiva, que tem uma característica singular, é aplicada “depois” do
acidente que expôs o paciente ao vírus. É uma vacina desconfortável e
cujas complicações não são desprezíveis, mais por conta do meio de
cultura. O melhor meio é embrião de pato. Pelas suas características
(tempo de carência inferior ao tempo de latência da doença (que é
fatal) ela salva a vida do contaminado. Pela mesma razão e pelos
inconvenientes não se usa preventivamente, até porque a maioria das
pessoas não se contamina por raiva animal.
Há vacinas de vírus mortos e de vírus atenuados, como a febre amarela,
usada em áreas de risco e que oferece certa freqüência de efeitos
colaterais.
A maioria das modernas vacinas é feita pelo método do RNA recombinante
(engenharia genética), ou seja, molde para produzir anticorpos
pré-definidos a partir da cópia de uma das hélices do DNA do
microorganismo. Portanto, é “impossível” causar a doença. É uma
macromolécula sob encomenda e não mais um microorganismo, nem atenuado
nem assassinado para extrair o antígeno.
O cálculo que se faz no caso da vacina anual de gripe é, por um lado,
econômico (redução de absenteísmo laboral) e por outro preventivo de
complicações mais comuns em idosos, principalmente, ou outros grupos
de risco, quando a conseqüência da gripe pode ser mais grave. É uma
vacina, portanto, de importância secundária. O que ocorre no caso
desta, H1N1 é que pela primeira vez uma variante nova de vírus vem
sendo rastreada mundo a fora e apesar da muito baixa letalidade atinge
(por ser novo) muita gente virgem de imunidade e causa um certo número
de mortes. Se não houver vacinação, principalmente dos que parecem
mais expostos às complicações, o rastilho vai desaparecer com o tempo,
mas algumas pessoas pagarão o preço. A relação custo benefício,
friamente calculada, é pouco favorável à vacinação, exceto pelo custo
político da cobrança.
O que infelizmente existe (isso é coisa antiga) é um antagonismo
ideológico sem pé nem cabeça às vacinas, vistas como instrumentos do
mal, e que produzem uma enxurrada de sub-literatura científica ou
mesmo pseudo-científica e que as pessoas mais preocupadas acabam
ajudando a disseminar. Já vi muita gente boa e basicamente sensata
embarcar nessa. Parece que uma das fontes de exorcismo às vacinas vem
da ultra-extrema-direita americana: vem do governo, portanto é do
demônio! Os sanitaristas de esquerda gostam, então só pode ser
sacanagem. Acontece que esses esquerdinhas só falam e fazem demagogia
sobre vacinas; quem as produz são cientistas de verdade e os
laboratórios que, é claro, ficam muito felizes em vende-las em grandes
lotes para os governos. Mas não que sejam inúteis ou perigosas.
Como eu vivi o tempo (pré-vacinação) de várias moléstias, como sarampo
e difteria, por exemplo, que matavam crianças como moscas nas
enfermarias, fico um tanto irritado quando ouço essas conversas. Eu
era residente de infecciosas quando houve a epidemia de meningite A em
São Paulo; devo ter feito milhares de punções liquóricas, e acompanhei
a queda brusca de casos após a vacinação maciça, comprada na França e
que, por sinal, demorou (era muito caro). Há naturebas que alegam que
a força da epidemia ia se esgotar de qualquer modo. Claro que ia,
depois de matar mais uma quantidade enorme de pessoas.
Portanto, em resumo:
– Vacinas são uma das mais extraordinárias contribuições científicas
para a humanidade; mudaram o perfil de mortalidade e a demografia;
extinguiram doenças, como a varíola e a paralisia infantil, por
exemplo;
– Como tudo, podem oferecer alguns riscos, em geral de pouca monta,
umas mais outras menos, e as mais modernas bem menos;
– É altamente recomendável fazer toda a vacinação básica das crianças,
além de outras mais recentes, como hepatite A e B por exemplo. Estas
são sintéticas;
– Aquela conversa de que a ONU vai esterilizar a população com
aditivos postos em vacinas é uma das idéias mais ridículas que já
ouvi, até porque não conheço substância capaz de esterilização
permanente depois de uma dose ou duas; se fosse possível, muita gente
tomaria voluntariamente;
– João, desculpe, mas aquela vózinha dinamarquesa ou é uma grande
vigarista ou completamente pirada; tudo isso é tão pseudo-científico
quanto o aquecimento global que você abomina.
– Quanto a contaminantes químicos, como o caso do mercúrio, se houver
é irrelevante. O tal efeito acumulativo, como para qualquer tóxico, só
acontece quando se absorve continuamente um produto de forma mais
rápida do que o organismo pode excretar. Acontece com metais pesados,
mas depende de dose e tempo. Aí deposita e acumula, como o mercúrio
elementar continuamente inalado em certos ambientes laborais. O mais
famoso é o tratamento do feltro por mercuriais inorgânicos (Chapeleiro
louco da Alice no pais das maravilhas). Até uns 40 anos atrás se usava
mercuriais como medicamentos para certas doenças graves, em doses que
podiam ser tóxicas. Mas traços de mercúrico ou methiolate (se houver)
são toxicologicamente desprezíveis como contaminantes de uma dose
isolada de vacina. Se as coisas não fossem assim estaríamos lascados,
porque a maioria das substâncias andam pelo mundo sem nos pedir
licença em microdosagens. Todos os metais pesados, todos os solventes
orgânicos etc, no solo, no ar, na água e tudo mais. “A dose faz o
veneno” já dizia Paracelsus (1493-1541).
Pessoal, desculpem se me alonguei, mas essa mania anti-vacinas me
irrita e resolvi escrever tudo uma vez e só. Espero ter ajudado. O
fato do Temporão ser um idiota não interessa. A vacina H1N1 tem
importância limitada mas, como já disse, a minha filha grávida,
portanto num grupo onde as complicações são mais freqüentes, eu
recomendei que tomasse logo.
Posted via email from Depósito de tralhas