São Tomás de Aquino nos ensina que Deus nos dá duas energias fortíssimas: a ira e o έ̔ρος (eros). Com a ira podemos tirar força de onde não existe, podemos nos insuflar contra o mal e fazer atos heróicos que não nos seriam possíveis em nosso “eu comum”. O senso comum já nos diz que o raivoso se transforma. O uso correto, contudo, da cólera é contra o mal, e não contra o mau. O ódio se faz útil quando não é voltado para o malfeitor. O malfeitor pode se converter, e o ódio a ele se torna um elemento ruim. O mal sempre será mau, e a Tradição nos diz que não pode amar o bem aquele que não odeia primeiro o mal.
Uma analogia riquíssima vale para essas energias: entendamo-las como a água. Se a água fica presa em barragens, é tão forte que acaba por destruí-las, para não destruí-las, precisa de uma válvula de escape, que nos faz perdê-la. Se a água vai para onde quer, provoca destruição, catástrofe. Se a água é canalizada ela traz a vida e o bem. Voltemos à ira: se guardamos nossa raiva, precisamos de uma válvula de escape (um saco de pancadas, por exemplo) e nossa raiva não serviu para nada; poderia ser pior, poderíamos explodir: e explodindo causaríamos destruição! Todo mundo sabe como são ruins os “esquentadinhos”. Se, por outro lado, canalizamos nossa cólera, poderemos combater as injustiças, empurrar o carro do nosso amigo, encher de tapas e trazer de volta à realidade uma pessoa que esteja ficando maluca.
Esta coleção de artigos fala da lascívia, é isso que significa πανκαταπυγία. ( πυγή significa “anca”, “nádega” (daí calipígia). κατά é, entre outras coisas, o movimento de cima para baixo (daí catarse, catatônico). καταπυγή significa, literalmente, “nádega que vai de cima para baixo”, ou seja, sodomita. Esse era um insulto mais ou menos grave na Grécia (contrariando todo o consenso entre os professores de história que dizem: na época, todo mundo era gay). Desse insulto, adicionando o prefixo παν (tudo, daí panamericano, panteísmo, etc.), têm-se o grego para “lascivo”. Coloquei um ια no fim, e pronto. ) Mas, se no senso comum a idéia que se têm de ira é idêntica à da Tradição, quanto ao eros isso não vale. E agora peguem tudo que eu falei da ira, e apliquem, strictu sensu, ao eros.
Vamos por partes: quem se “reprime” demais no sexo, acaba explodindo. Acho que nem os puritanos discordam disso. Ou então, precisa de uma válvula de escape: pornografia, masturbação. Quem explode: os tarados, estupradores, pedófilos são malvistos também, sabe-se que eles não vivem de maneira sadia a sua sexualidade (com exceção talvez para o jovem “pega todo mundo”, que tem até pose de bom moço). Então como “canalizar” o eros? A resposta natural é: monogamia.
Eu defendo a monogamia mesmo para os não-crentes. Eu poderia tratar aqui de como o sacramento do Matrimônio é importante, mas a monogamia é mais de 50% da sexualidade sadia. Contudo, e isso é um dos elementos principais da situação lasciva hodierna, a formação dos casais têm acontecido cada vez mais tarde. E sabemos — todos nós temos vísceras, ou não? — que o impulso sexual vem cedo. Como lidar com isso sem prejudicar a si nem aos demais?
Uma pessoa que não faz sexo — um celibatário ou um casto, por exemplo — precisa também canalizar o eros, e não reprimi-lo. Há padres que reprimem o eros e nós sabemos qual é a válvula de escape deles. Na melhor das hipóteses, é o dirty talk. O eros, e aí está uma coisa que a sociedade moderna esqueceu (sim, esqueceu, pois já soube), é um dos elementos constitutivos do amor. Bento XVI deixa isso bem claro na encíclica Deus Caritas Est (vá lá, leia, e veja se não faz sentido, mesmo que você não seja católico). E é possível (ora, o que não é possível é que façamos sexo com todas as pessoas que amamos) “amar sem trepar”. Só que a energia do eros é muito forte, a mais forte que recebemos. Portanto não pode ser uma mera “filia”, um amor de amigo. Deve ser um amor plenamente comprometido, por uma vasta gama de pessoas. Pode ser também a santificação do trabalho: despejar o amor erótico no trabalho, por que não? Isso é difícil de aprender; para o católico, o caminho é mais fácil: vida de adoração a Deus, comunhão diária, tudo isso “canaliza” o eros. Quem nos ensina isso muito é Santa Teresa D’Ávila, que sofreu com tentações de luxúria a vida inteira (segundo o exame grafológico presente no livro “I Santi dalla loro scrittura”, de Girolamo Moretti, ela tinha a personalidade de uma ninfomaníaca): foi quiçá a maior mística da história (volte ao prólogo agora, se desejar).
O eros dedicado a Deus é nos ensinado desde sempre: basta ver quão sedutora é a passagem bíblica da pecadora que lava os pés de Jesus e os enxuga com os cabelos (há nos sinópticos, mas eu prefiro a versão de João, capítulo 12). Ora, quem dirá que não havia eros nos atos daquela mulher? E que foi-lhe respondido? Que ela muito amou, e por isso muito tinha lhe sido perdoado.
Gostaria de agradecer sua vista, e elogiar seu texto.. muito bom.. passarei a vir mais vezes por aqui.. Abraços e sucesso sempre..
“Portanto não pode ser uma mera “filia”, um amor de amigo. Deve ser um amor plenamente comprometido, por uma vasta gama de pessoas”
não captei o passo; ‘amar várias pessoas’ demonstra um maior comprometimento que o ‘amar a um amigo’?
Obrigado pelo comentário Gabiru, de fato isso não ficou claro. A filia, que é o amor que demonstramos pelos nossos amigos é um amor cordial, leve. Ele é necessário e importante, mas o “eros” não cabe nele, o eros é muito forte, ele transborda.
Esse amor comprometido é um amor que nos consome, no qual colocamos todas as nossas forças. “Amar várias pessoas” não é um compromisso maior que “amar um amigo”. De fato, quem não consegue amar nem as pessoas próximas e queridas não pode querer amar mais pessoas. O eros derramar-se-á primeiro (e de forma plenamente comprometida) pelos próximos: pela família, pelos amigos, pelos colegas, e só então poderá ser amplificado.
Consegui fazer-me entender agora? Peço desculpas pelo excesso de síntese anterior, e agradeço o feedback!
Salve Maria,
O texto é bem escrito e rico em fontes, porém gostaria de acrescentar – se me permitisse – que a Ira e o Eros, são movimentos inciados pela sensibilidade, a potência da alma que a liga ao corpo, por isso elas afetam – por exemplo – diretamente o nosso metabolismo.
Com a canalização – como você mencinou – acabamos por submet-las a inteligência, a primeira potência da alma, e que nos faz semelhante a Deus, juntamente com a vontade.
A receita para isso seu amigo Lemos bem colocou, a pratica da virtude movimenta todas as potências da alma para o bem.
Pois querendo fazer o que é certo, sabendo que é certo e sentindo satisfação em fazer o que é certo, se encontra um grande conforto, mesmo que o mundo se coloque contra isso. um grande exemplo é a própria vida de S. Tomás.
Se me é permitido criticar algo, é a exarcebação dos defeitos de um santo, apesar de didático, não é uma atitude louvavel.
parabens pelo texto.
Carlos Lemes
http://leitorcritico.wordpress.com/